O filme CODA mostra que não precisa ser mudo para não ter voz

Alerta: este texto contém pequenos spoilers.

CODA (ou No ritmo do coração – título no Brasil, que francamente…) é um filme indicado ao Oscar em três categorias este ano: melhor roteiro adaptado, melhor ator coadjuvante (Troy Kotsur) e melhor filme. Adaptado de outro filme francês (La Famille Bélier), CODA, que significa “filho de adultos surdos” (uma tradução livre de Child Of Deaf Adults) mostra os últimos meses na escola de uma menina que é a única não surda e muda da sua família.

Como esperado, o filme mostra as dificuldades daqueles que enfrentam adversidades causadas por alguma deficiência, mas à medida que vai se desenvolvendo, começa a ficar claro que não se trata apenas disso. Os conflitos são muito mais universais do que parecem à primeira vista.

Ruby (Emilia Jones), a protagonista, trabalha no barco de pesca da família, servindo como uma ponte entre eles e o mundo dos que falam e ouvem. É ela quem negocia a pesca no porto da cidade e, obviamente, é a que precisa comunicar à família os preços irrisórios pagos pela companhia que os compra.

Apesar de parecer angustiante ver o pai e o irmão se sentirem, além de injustiçados com o preço, incapacitados de negociarem com os atravessadores, é aí que o filme começa a se mostrar mais amplo: seria a situação dos demais pescadores diferente? Teríam eles mais voz só porque podem falar?

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CODA não é um filme sobre uma família de surdos e mudos. É um filme sobre não ser ouvido.

Depois de seu trabalho no barco, Ruby vai à escola. Aqui não preciso nem falar o quanto é exaustiva a rotina dessa garota. Mas ainda que ela demonstre suas inseguranças normais de adolescente – inclusive por sofrer bullying pela condição da família – a personagem está longe de ser representada como vítima.

Ao se inscrever numa matéria optativa de coral, seu talento para música é descoberto por um professor extremamente rígido, mas que lhe incentiva a aplicar para uma bolsa de estudos e ser a primeira da sua família a fazer uma faculdade.


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É então que se desenvolve o conflito central do filme: deveria Ruby investir na sua futura carreira ou se dedicar à família, que depende dela como único membro capaz de fazer a ponte entre eles e o mundo?

Ela tenta fazer os dois, é claro. E aqui entra um dos elementos que mais me agradou do filme: ninguém facilita a vida dela. O professor continua sendo extremamente exigente e até severo por causa dos seus constantes atrasos para os ensaios. E não vemos Ruby em nenhum momento justificá-los com toda a demanda que pesa sobre ela para ajudar a família.

E apesar de retratar uma estória rara, o tema de CODA é universal.

Ruby tem uma paixão pela música que seus pais nunca entenderão. E não faltam exemplos no mundo de famílias que mesmo que não sejam fisicamente impedidas de ouvir, não entendem as necessidades e desejos dos seus filhos. Pode ser uma paixão por algo simples como música, pode ser um estilo de vida ou pode ser uma orientação sexual, entre tantos outros exemplos.

Assim o mundo vai se enchendo de pessoas que tomam decisões por pressões externas, escolhem caminhos diferentes dos que querem seguir ou se escondem dentro de si. Levam consequências para a vida toda simplesmente por não se sentirem compreendidos em suas famílias e comunidades.

E não são apenas os jovens que perdem suas vozes neste mundo. A situação dos pescadores da cidade mostra que não é necessário ser mudo para sofrer com injustiças causadas pelos mais poderosos. Apenas a família de Ruby é muda, mas todos se submetem à mesma situação de dependência.

Como disse, não é necessário ter qualquer tipo de limitação física para se identificar com a estória e aí, na minha opinião, está a genialidade de CODA. A estória não vai por caminhos óbvios ou tenta nos convencer que os personagens merecem mais simpatia que nós mesmos.

Em alguns momentos nos ajuda a abrir a cabeça para problemas que não imaginamos se não temos a oportunidade de conviver com surdos e mudos, como por exemplo, a intensidade de barulho que fazem, simplesmente por não perceberem. (Já parou para pensar nisso?)

E a cena que talvez seria o ápice do filme – a apresentação musical de Ruby na escola – é completamente silenciada para que possamos vê-la a partir da perspectiva da sua família. Não tem como não ser impactado.

Sim, eles são diferentes. Sim, eles têm limitações que não temos. Mas mostrá-los como capazes de superar as dificuldades é a melhor forma de retrata-los como parte da sociedade.

Devo confessar que o filme foi diferente do que eu esperava, mas me surpreendeu positivamente. A impressão que fiquei depois do trailer era a de que seria talvez mais poético, com passo mais lento e cheio de subjetividade. 

Mas CODA é, antes de tudo, um filme leve, desses de fácil digestão e que permite, inclusive, ser assistido descompromissadamente, quase como se fosse uma comédia romântica de adolescentes.

Tem alma sem ser melodramático. É divertido sem ser vazio.

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